ponte

(com Lea van Steen) _ 2008

  • 2008 _ Sesc Avenida Paulista
  • 2009 _ Espacio Fundácion Telefônica
  • 2011 _ agora/ágora
  • 2011 _ Funarte Belo Horizonte

Desvios suspensos: nos arcos das íris.

“Gostaria de ser levado de novo para os dioramas cuja magia brutal e imensa sabe me impor uma útil ilusão. Prefiro contemplar alguns cenários teatrais onde encontro, expressos com arte e concentrados de forma trágica, meus sonhos mais caros. Essas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a maioria de nossos paisagistas são mentirosos, justamente porque negligenciaram mentir” (Charles Baudelaire, O salão de 1859)

Pontes são lugares de passagem, elos entre aqui (onde quer que seja) e lá (onde quer que esteja). ponte, de Lea van Steen e Raquel Kogan, opera neste fluxo, através de imagens que se desdobram por meio de projeções e refrações, em espaço difuso. Imagens que surgem nos arcos da íris, ao mesmo tempo em que se projetam prédio afora. O ar como substância que difunde. A luz como elemento que recorta certas superfícies, a despeito de sua rigidez. Congruência do tempo na descontinuidade de uma geometria que se supõe isenta de fraturas, ao menos para quem gira na velocidade lenta da terra em torno do sol, sem prestar atenção nas fendas que refletem das mais diversas superfícies conforme seus raios espalham-se (e às vezes se espelham) aqui, ali, em todo lugar.

Nesta ponte, uma estrutura em U preenche o vazio da sala escura, que funciona como anteparo de imagens que rebatem no vidro -- sombras cinemáticas suspensas que se desdobram em seus próprios reflexos; movimento que multiplica o espaço físico para além de seu limite evidente. Talvez a palavra tela não seja própria para descrever esta superfície flutuante, que remete às fantasmagorias e lanternas mágicas. Superfície que funciona como elo entre os prolegômenos da imagem em movimento e um posfácio do cinema projetado em perspectiva no fundo de uma sala (aquele cinema típico do século XX, que fez da experiência imersiva uma forma de contemplação, imagem em movimento para corpos estáticos). Ao contrário, ponte entrelaça quem vê e o que é visto. É preciso que exista movimento de corpos diante das imagens, para que elas, por sua vez, devolvam aos olhos seus movimentos.

O jogo entre polaridades (presente e ausente, luz e sombra, corpo e vazio, rotineiro e inusitado) dispara os fluxos desta ponte. Que pode ser, também, uma ponte entre dentro e fora, entre imagens que se projetam para além do ambiente ao mesmo tempo em que mergulham em direção ao olhar interno – da memória, da invenção. Interface heterogênea, que coloca em rede elementos que de outra forma permaneceriam distantes.

De maneira esquemática, é possível dizer que há dois entendimentos mais comuns das imagens. A imagem que é ilusão, linguagem que constrói fábulas com cores, linhas, formas, texturas. A imagem que é decalque, duplo que transfere o mundo para um espaço de geometria, ponto-de-fuga e proporções. A ponte construída por Lea van Steen e Raquel Kogan entre dentro, fora, luz, sombra, corpo e vazio também é um elo entre estes dois tipos de imagem. Realismo onírico (ou ilusão menos simulacro?), em que seres sem espessura surgem e desaparecem como se fossem memórias de um futuro desconhecido, latente. Ponte entre o espaço físico e uma rua imaginária que une o espaço interior à cidade. E não há pedras: no meio do caminho, há desvios, há tempos que congelam, há curvas que fraturam. Luz que se desdobra em outras direções e retorna. Por isso, as imagens que percorrem esta ponte não são meros reflexos. De fato, elas refratam um para além do espaço, duplos de algo que não está ali, mas que vemos, nos intervalos entre um pulso e outro. Espécie de miragens que completam o que era falta, como um cinema que recusa a seqüencialidade cartesiana dos planos sucessivos, em favor de uma geometria de ilusões “infinitamente mais próximas da verdade”.

Marcus Bastos - artista e pesquisador - maio de 2018

Suspended Detours: in the arcs of the iris.

“I would once again like to be taken to the dioramas whose immense and brutal magic can impose upon me a useful illusion. I prefer to gaze upon some theatrical scenarios where I encounter, artistically expressed and concentrated tragically, my dearest dreams. These things, being false, are infinitely closer to the truth, while most of our landscape painters are liars, precisely because they neglect to lie” (Charles Baudelaire, The Salon of 1859)

Bridges are places of passage, links between here (wherever here is) and there (wherever there might be). bridge, by Lea van Steen and Raquel Kogan, works in this flux, through the images that unfold from projections and refractions, in a diffused space. Images that appear in the arcs of the iris as they simultaneously project out onto the building. Air as a diffusing substance. Light as an element that cuts certain surfaces, despite its rigidity. The congruence of time in the discontinuity of a geometry that is supposed to be exempt of fractures, at least for those who spin at the slow speed of the earth around the sun without paying attention to the slits reflecting the most varied surfaces as its rays spread (and, at times, are reflected) here, there and everywhere.

In this bridge, a U-shaped structure fills the emptiness of a dark room, acting as a screen of images that hit back on the glass – suspended kinematic shadows that unfold in their own reflections; a movement that multiplies the physical space beyond its obvious limit. Maybe the word screen is not appropriate to describe this floating surface that remits phantasmagorias and magic lanterns. It establishes the link between the prolegomena of the moving image and the aftermath of the cinema projected, in perspective, onto the back of the room (that restricted cinema typical of the XX century, which transformed the immersive experience into a type of contemplative gaze, moving images before static bodies). Contrarily, bridge, intertwines who sees and what is seen. There needs to be movement before the images, so that they, in turn, return its movement to the eyes.

The play between polarities (present and absent, light and shadow, substance and empty, routine and unusual) hurl the fluxes of this bridge. Which, likewise, can be a bridge between internal and external, between images that are projected beyond the ambient while simultaneously they dive towards the inner eye — of memory, of invention. A heterogeneous interface networking elements that otherwise would have remained distant.

Schematically, it is possible to say that there are two more frequent understandings of images. The image that is an illusion, a language that constructs fables with colors, lines, shapes, textures and the image that creates a double, that mimics the world as geometric space, vanishing point and proportion. The bridge built by Lea van Steen and Raquel Kogan, among inner, outer, light, shadow, substance and void, is also a link between these two types of images. Oneiric realism (or image minus simulacrum) where beings, void of thickness, appear and disappear as if they were memories of an unknown, latent future, a bridge between physical space and an imaginary street that joins the interior of the installation and urban space. On the path there are detours, frozen times and fracturing curves. Light that unfolds in other directions and doubles back. This explains why the images passing over this bridge are not mere reflections. In fact, the images refract to some place beyond their space, like doubles of something that is absent, but which we see, in the intervals between one pulse and another. Somewhat like mirages that complete what was missing, like a cinema that refuses the cartesian sequentiality of successive planes, in favor of a geometry of illusions “infinitely closer to the truth”.

Marcus Bastos - artist and researcher - may 2008